Thursday, March 05, 2009

verão, 2009

sol, calor, mas alguma sombra persiste. 
não há de ser nada demais, 
dizem,
talvez um presságio do outono
inverno distante
vento
algum presságio ou medo que seja. 
não há de ser nada demais,
dizem,
o céu está azul
e a vida segue como em todos os dias. 

Tuesday, March 03, 2009

antigas escrituras







Sentado frente à fogueira, contou ao jovem histórias ancestrais. Lendas mais antigas que o próprio tempo. O fogo estalava e fazia subir aos céus uma fumaça leve enquanto esquentava a noite. Nos olhos do xamã, rugas mostravam que o conhecimento vinha com o tempo e alguma dose de pesar. Pois havia ali alguma espécie de sombra, daquelas que permaneceriam obscuras mesmo sob o sol do meio-dia. Vestido com roupas sóbrias, cabelos longos desarrumados por sobre a cabeça, o rosto era sisudo embaixo do grande chapéu cheio de adereços. Era sempre assim, cara fechada, olhos de sombra, a boca se movendo lentamente e quase sussurrando as palavras em um tom que ameaçava e acolhia. 

O garoto, que tremia de frio e expectativas, agora estava mais calmo, efeito da fogueira e das palavras que relembravam o que não estava registrado em qualquer memória. A tradição mandava que os jovens, quando próximos de completarem os 21 anos da maioridade total, deveriam ser levados ao xamã. Somente assim poderiam conhecer as histórias do bem e do mal abrigadas somente na cabeça daquele sábio e em arcas guardadas em cavernas profundas de localização desconhecida. Ficou curioso pelo modo como ele poderia saber tudo sobre as coisas dos três mundos e parecia falar com precisão sobre passado, presente, futuro.

"Como pode olhar através das pessoas e dos dias como se fossem a água do mais puro rio?" perguntou, logo arrependendo-se da ousadia. 

O xamã fechou os olhos. Sereno, abriu-os novamente, deixando suas pupilas mostrarem uma escuridão maior do que a daquela noite de frio no deserto. 

"Todos recebemos a dádiva da visão. Percebi sua atenção sobre meus olhos. Teu olhar pesa, mas não vê". 

Apontou para a fogueira. As chamas crepitavam. 

"Olhe para o fogo. O calor embaça a visão. Olhe diretamente para o sol. A luz ofusca. Meus olhos trazem a sombra da noite. Às vezes, algo se esconde nela. Mas, ainda assim, vejo mais do que os que tem o olhar claro e cristalino". 

O velho desviou o olhar, fitando um horizonte perdido. "Não é algo que se aprende da noite para o dia, você sabe". 

Fechou os olhos, sentindo antecipadamente a dor. Um golpe, seco. Outro, agora quente, sangue. Não reagiu. Sessenta anos de diferença entre os dois fariam com que qualquer tentativa fosse inútil. Pôde sentir ainda a agonia e o medo antes do derradeiro sono. Dois buracos vazios no rosto sangravam como lágrimas, violados. 

Já longe dali, o joven carregava sangue e sombras em suas mãos. Olhos de pupilas castanhas agora sem vida, mas que pareciam ainda assim observar sagazmente. Levantou um deles ao céu e encarou-o. Sentiu como se a noite avançasse pelas horas, a luz das estrelas diminuindo e, mesmo a fogueira, um tanto distante, parecia sumir de vista. 

Percebeu então que havia algo a mais. Uma linha preta fazia como que uma trilha por entre a paisagem. Correu, seguindo-a, consciente de que tinha pouco tempo para descobrir o significado daquilo antes de ter que disparar em fuga, quando descobrissem o corpo do xamã. Talvez fosse mesmo aquele traço riscado no ar uma rota de escapatória. 

Andou muito, voou pelo deserto, entrou em túneis, passou por mato cerrado e lagos secos. E foi no leito de um rio já inexistente que viu o sinal desaparecer, entrando na areia. Escavou. Rasgando os dedos, ávido, cavou a terra. Que pareceu de repente ceder. Surgia então um grande buraco, oculto por tantos anos que mesmo com a visão roubada não poderia contar. 

Havia ali uma arca de madeira antiga, mas conservada como se tivesse sido esculpida na semana anterior. Não havia chave. Abriu-a para encontrar um manuscrito, alguma tinta ancestral sobre pele de cordeiro, como nos papiros antigos. Era um dialeto antigo, dos que apenas ouvia falar quando conversava com os anciões. Mas conseguiu entender. De alguma maneira. 

"Aquele que cometeu o ato vil não foi recompensado. Embora não tivesse mais a luz a ocultar sua visão, a ganância e o desejo o deixavam mais cego do que mil sóis".